segunda-feira, 2 de maio de 2011

Suavíssima

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma ...

Fica-se longe, quase morta, como ausente ...
Sem ter certeza de ninguém ... de coisa alguma ...
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma ...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
Tão para lá! ... No fim da tarde ... além da bruma...

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma ...

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma ...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente ...

Cecília Meireles

quinta-feira, 31 de março de 2011

Candiga de Malazerde

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Murilo Mendes

terça-feira, 29 de março de 2011

O sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.

O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.

Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.

O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

José Saramago.

quinta-feira, 17 de março de 2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Um Final a Dois

A hora chegou, querida.
Divide comigo tua vida,
já estou desesperado,
velho, só e cansado.
E cadê você ao meu lado?
Não foi esse o combinado.
Deixa isso pra depois
e vamos ter um fim a dois...
Envelhece junto a mim
me acompanha para o fim.

Fred Caju

Conheça mais sobre o Poeta em: http://fredcaju.blogspot.com/

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Uma delicada forma de calor

Eu me lembro
de você ter falado
Alguma coisa sobre mim
E logo hoje, tudo isso vem à tona
E me parece cair como uma luva
Agora, num dia em que eu choro
Eu tô chovendo muito mais do que lá fora
Lá fora é só água caindo
Enquanto aqui dentro, cai a chuva

E quanto ao que você me disse
Eu me lembro sorrindo
Vendo você tão séria
Tentar me enquadrar, se sou isso
Ou se sou aquilo
E acabar indignada, me achando totalmente impossível
E talvez seja apenas isso:
Chovendo por dentro
Impossível por fora

Eu me lembro de você descontrolada
Tentando se explicar
Como é que a gente pode ser tanta coisa indefinível
Tanta coisa diferente
Sem saber que a beleza de tudo
É a certeza de nada
E que o talvez torne a vida um pouco mais atraente

E talvez, a chuva, o cinza,
O medo, a vida, sejam como eu
Ou talvez , porque você esteja de repente,
Assistindo muita televisão

E como um deus que não se vence nunca
O seu olhar não consegue perceber
Como uma chuva, uma tristeza, podem ser uma beleza
E o frio, uma delicada forma
De calor

Lobão

domingo, 20 de fevereiro de 2011

The King of Limbs


Figuras

O teu rosto entre as minhas mãos...
eu carrego teu rosto,
teus lábios secos.
Carrego teus olhares e teu medo.

O teu corpo se encolhe,
como se quisesse contar uma estória.
Já vi um tudo inigualável,
o meu mundo... teu...

O teu espaço cabe no tempo
que levo a atingir
tuas vozes ameaçadoras ...
de si pra si ... o que resta?

O teu rosto entre as minhas mãos,
como se eu pudesse ler
teu poema concreto
sobre ser humano.

Carla Dias

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Ausência

Estou um pouco ausente desse espaço.

Penso que hoje pode ser a primeira vez que eu não posto poesia. É muito provável que isso se dê porque de uns dias pra cá nenhuma (pelo menos entre as que eu conheço), tem expressado, ou pelo menos chegado perto, de como tenho me sentido. Não tenho pretensão de conseguir fazê-lo através dessas poucas palavras, pois não tenho talento para a escrita...

Solidão parece uma palavra dramática demais pra ser usada aqui, e não se trata disso. Vazio, tão pouco me parece adequada. O que mais se aproxima é um grande sentimento de Ausência. Ausência de alguns amigos, de alguns sentimentos e de algumas sensações. Porque é bem possível que o que eu tenho, já não me baste. Eu, que sempre desejei tanto, e que nunca me contentei com o que é parcial.

E sabe do que mais? Não tenho nenhum interesse em minimizar essa necessidade de completude.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Ímpar

Epigrama

Bom é ser árvore, vento:
Sua grandeza inconsciente
E não pensar, não temer
Ser, apenas. Altamente...

Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte.
Com o mesmo rosto tranqüilo
diante da vida e da morte.

Marly de Oliveira

sábado, 1 de janeiro de 2011

Grito

Não, não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária. Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagens para o mundo.
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o silêncio de convenção
e as máscaras de piedade compungida.
Dispensarei as rosas, as violetas,
os absurdos véus sobre meu rosto.
Serei eu mesma. Estarei
inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada de amargor.

Não. Não irei sem grito.

Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras -
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.

Lila Ripoll