quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Nalgum lugar


Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
De qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
No teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
Ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
Embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
Me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
Ou se quiseres me ver fechado, eu e
Minha vida nos fecharemos belamente, de repente
Assim como o coração desta flor imagina
A neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
Nada que eu possa perceber neste universo iguala
O poder de tua intensa fragilidade: cuja textura
Compele-me com a cor de seus continentes,
Restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
E abre; só uma parte de mim compreende que a
Voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
E. E. Cummings

Assim, de repente

Cuspiu no prato que raspou
Duvidou que um dia fosse mudar de idéia
Não preparou, se mandou, evaporou
Espatifou o prato na parede
E eu catando os cacos pra tentar colar depois
Mas depois não vou que não tem
Não vou que não tem, nem vai que não tô
Como quisesse pisar...
Só por maldade ignorou
Seria realmente assim
E se pudesse levava até a saudade
Mas deixou...
Impregnada em cada fração de mim

Da noite pro dia
Nem sabia que aquela seria
A última vez que eu a via
Da noite pro dia
Ela sorria e me garantia
Estar na maior alegria
Da noite pro dia
A ironia é serventia...
Por conta da casa vazia
Da noite pro dia

Você meu remédio tarja preta
Só com prescrição
Onipresente feito o ar

Jay Vaquer

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Amargo


O vinho podre que escorre das xícaras
O mel amargo, o meu coração
De onde quer que tudo venha
Tudo irá pra onde nada nunca se alcança
De onde quer que tudo venha
Tudo irá pra onde nada nunca se alcança
Tenho a memória de tudo que existe
Tudo que é triste e alegre ou não
Eu guardo as flores mortas na sala
Eu faço sala pro tempo
Eu guardo as flores mortas na sala
Eu faço sala pro tempo
Ainda que tarde, agora que é tarde
Sempre é cedo, cedo
Ainda que tarde, agora que é noite
Eu sinto medo...

Zeca Baleiro

Divã

O que me consome
Consumo e some também
O que me consola
Esmola não me faz bem
O que me atola
É lama que não sai, Dalai
O que me atura
Não dura, nem fica, nem vai
O que me chateia
Passeia numa tarde nublada
O que me incendeia
Derruba essa porta fechada
O que me apaga
Alaga até pensamento
O que me assola
Decola no sopro do vento
O que me persegue
Não consegue ficar pra trás
O que me assusta
Se nada é um pouco mais
O que me domina
Controle não é paz
O que me fascina
Repele e tanto faz

Quando vejo, eu sei que dura mais,
do que pode ser, se é que dura o tempo
que preciso, pra te ver, se é que tenho
o tempo que preciso pra te ver...

Jay Vaquer

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Por um pouco de paz (crime do desassossego)


Cumpro a sentença,
e compenso o que a cela limita
Peço licença de meu sensoe me faço visita
Me conto como está um antigo amigo inventado
Confesso a saudade de estar comigo ao meu lado
e tento cavar um túnelque me leve de volta
a tudo que me prendeusem saber ao certo se era eu

Naquele instantediante da chance
de roubar um pouco de paz
roubar um pouco de paz
preso por não ter sossego

Sem recompensa
um clima tenso e a pena me irrita
mas não faz diferença
me convenço e cancelo a visita
me dou um bolo sem nenhum sabor
bolo um plano de fuga à prova de dor
e tento cavar um túnelque me leve de volta
ao mundo que me prendeu
sem saber ao certo se era eu

Brigo pelo estopim de um motim,
de uma fuga em massa
uma rebelião qualquer
que me devolva a graça
e um sol quadrado não me aquece,
já não amanhece
o brilho que existia em meus olhos
naquele instante ...

Jay Vaquer

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Desalento

Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim
Vai e diz
Diz assim
Como sou Infeliz
No meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu rodei
Que eu bebi
Que eu caí
Que eu não sei
Que eu só sei
Que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela
Que eu entrego os pontos

Chico Buarque e Vinicius de Morais

Inquietação


Não quero mais ser guiado, animado e afogueado... Este coração já fermenta o bastante por si próprio. Necessito muito antes de canções que embalem [...]. Quantas vezes tenho que ninar o sangue revolto até acalmá-lo... Tu sabes que não existe no mundo nada tão instável, tão inquieto quanto o meu coração. Se é que tenho necessidade de dizê-lo a quem tantas vezes carregou o fardo de me ver passar da aflição à digressão, da doce melancolia à paixão furiosa, meu caro! É por isso que trato o meu coraçãozinho como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as vontades. Não diga isso adiante, há pessoas que poderiam usá-lo contra mim.


Goethe

Sonhos


Que a vida humana é apenas um sonho outros já disseram, mas também a mim esta idéia me persegue por toda a parte. Quando penso nos limites que circunscrevem as ativas e investigativas faculdades humanas; quando vejo que esgotamos todas as nossas forças em satisfazer as nossas necessidades, que apenas tendem a prolongar uma existência miserável; quando constato que a tranqüilidade a respeito de certas questões não passa de uma resignação sonhadora, como se a gente tivesse pintado as paredes entre as quais jazemos presos com feições coloridas e perspectivas risonhas – tudo isso, [...] me deixa mudo. Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo! Mas antes em pressentimentos e obscuros desejos que em realidade e ações vivas. E então tudo paira a minha volta, sorrio e sigo a sonhar penetrando adiante no universo.


Goethe

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Precisão

O que me tranquiliza é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

Clarice Lispector