domingo, 9 de maio de 2010

S. Bernardo

[...] Não havia soldados no lugar, nem havia juiz.

E como o vigário residia longe, a mulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças. É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a verdade.

Seu Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava sempre cheia. Os algodoais do major eram grandes também. Nas colheitas a população corria para eles. E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabia que eram brancos.

Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o braço e gritava:

- Quem for meu me acompanhe.

E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo mundo seguia o major porque todo mundo era do major.

Nas noites de S. João uma fogueira enorme iluminava a casa de seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do major tinha muitas outras carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam ao redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de S. João.

Ora, essas coisas se passaram antigamente.

Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.

O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.

Trouxeram máquinas – e a bolandeira do major parou.
Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das crianças.

Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.

O advogado abriu consultório, a sabedoria do major encolheu-se – e surgiram no foro numerosas questões.

Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de boi deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.

As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de S. João: dançavam o tango, no frevo.

Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer.

Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que usava fitas, muitas fitas.

Acharam o lugar atrasado e fugiram. Seu Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por aí, ela pelas fábricas, ele no exército.

Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loteria, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo e dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinqüenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.

Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:

- Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.


Graciliano Ramos, São Bernardo, 88ª ed., 2009. pp.44-46

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