[...] Não havia soldados no lugar, nem havia juiz.
E como o vigário residia longe, a mulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças. É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a verdade.
Seu Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava sempre cheia. Os algodoais do major eram grandes também. Nas colheitas a população corria para eles. E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabia que eram brancos.
Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o braço e gritava:
- Quem for meu me acompanhe.
E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo mundo seguia o major porque todo mundo era do major.
Nas noites de S. João uma fogueira enorme iluminava a casa de seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do major tinha muitas outras carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam ao redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de S. João.
Ora, essas coisas se passaram antigamente.
Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.
O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.
Trouxeram máquinas – e a bolandeira do major parou.
Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das crianças.
Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.
O advogado abriu consultório, a sabedoria do major encolheu-se – e surgiram no foro numerosas questões.
Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de boi deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.
As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de S. João: dançavam o tango, no frevo.
Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer.
Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que usava fitas, muitas fitas.
Acharam o lugar atrasado e fugiram. Seu Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por aí, ela pelas fábricas, ele no exército.
Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loteria, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo e dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinqüenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.
Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:
- Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.
Graciliano Ramos, São Bernardo, 88ª ed., 2009. pp.44-46