quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Umbigobunker!?

O pretérito, mais que imperfeito,
Não leva em conta os meus planos pra seguir
Deita e borda, a torto e a direito
Meus cumprimentos pra quem não desistir

Hora dessas encontro um jeito
De ficar livre de todo mal
Se alimenta em cada defeito
Um tempo inútil contemplando o próprio umbigo

Funcionando feito um bunker
Bem no meio desse campo de batalha
Entre aparentar alguém melhor
Ou simplesmente ser o que se pode ser
Simplesmente ser o que se pode ser

Com as fraturas expostas
Dispostas a nos expor
Fraturas expostas
Dispostas a nos expor

O "pretérito mais-que-imperfeito"
Não leva em conta os meus planos pra seguir

Jay Vaquer

terça-feira, 26 de agosto de 2014

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Silêncios

Uma espécie de loucura a dominara. Andava pelos cantos da casa procurando vozes, expressões de vida, ou apenas ouvidos para o seu silêncio. Ao invés disso, era a angústia da incerteza que tomava conta dos espaços. Pensou que seria bom escrever algo. Mas, enquanto isso, tinha certeza de que algo não seria possível: externar a sensação de vazio que vivenciava nos últimos dias, ou quem sabe nos últimos meses. A própria sensação do correr dos dias era fugidia a essa altura. Entregava-se ao trabalho também silencioso. E entre os parágrafos, ali momentaneamente encontrava a sua voz entrecortada. Talvez estivesse perdendo o trato com as palavras. Do quintal os ruídos de sua vida: os ventos sacudiam a grande mangueira a lembravam do barulho do mar. Fazia quase um ano que não o encontrava. Sentia falta daquela paz ruidosa do mar, daquele movimento contínuo que representava a transitoriedade que ela buscava: a mudança que desejava para aquelas situações sobre o qual não tinha controle. Até que veio a dor, a dor física que acompanhava esse estado mental. Tentou resistir a ela, mas, insuportável, tomou aquele comprimido que aliviava o momento. Sentiu-se derrotada ao fazê-lo, mas naquele momento não tinha outra opção.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Suavíssima

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma ...

Fica-se longe, quase morta, como ausente ...
Sem ter certeza de ninguém ... de coisa alguma ...
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma ...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente ...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente ...
Tão para lá! ... No fim da tarde ... além da bruma...

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma ...

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma ...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente ...

Cecília Meireles

quinta-feira, 31 de março de 2011

Candiga de Malazerde

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Murilo Mendes

terça-feira, 29 de março de 2011

O sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos.

O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.

Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.

O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.

José Saramago.

quinta-feira, 17 de março de 2011